Honram-me lendo meus escritos...

sábado, 28 de maio de 2016

CASTIGO

Alguns fiapos de sol já invadiam o quarto pelas frestas da janela de madeira escura de meu quarto naquela manhã sempre má recebida de segunda-feira. Não tardou para o relógio, que já marcava sete horas e meia daquele dia, despertar com seu estardalhaço habitual anunciando que eu deveria acordar e começar a arrumar as coisas para quando faltasse meia hora para dar meio dia, sair de casa em direção à escola. Minha rotina de moleque era pautada por minha mãe que sempre me ensinou sobre as responsabilidades de quase homem formado que, mais cedo ou mais tarde, deveria assumir as rédeas das indomáveis carruagens da lida.
Por enquanto, e acho que sabia disso muito bem, eu era somente um menino de dez anos e mais alguns meses com hábitos que não se restringiam apenas aos de se prostrar defronte uma caixa branca de um computador. Parece, de fato, nostalgia falsa e exacerbada de quem já passou dos cinquenta, falar que eu soltava pipa cruzando com a galera da rua de trás e tentava tirar a bola de gude do triângulo mirando naquelas que estavam nas extremidades dos riscos retilíneos feitos na calçada de barro, mas não é. Eu brincava de coisas que, hoje, poucos tem o privilégio de saber do que se trata. Perdi a conta de quantos peões grudei, valendo o racha, no pião do adversário. Corria no pique bandeirinha e, muito embora não fosse minha especialidade, jogava futebol na mesma intensidade que arrumava confusões por achar que a bola que chutei havia entrado, enquanto os caras do outro time teimavam aos berros que havia passado pelo lado de fora da trave no campinho de barro adornado, nos cantos, com moitas de capim. O curioso é que não existia problema algum em ficar descalço. Atualmente, em virtude dos sapatos que usei metade de minha vida, em favor do trabalho, me incomoda bastante. As solas de meus pés eram exoesqueletos que resistiam ao asfalto fervido pelo sol a pino. Impressiono-me ao recordar de como pisava nas folhagens espinhosas da vegetação rasteira de beira de calçada, que minha avó chamava de quebra-pedra com a qual fazia chá para suas dores renais, sem sentir o mínimo espertar.
Vivia boa parte do tempo fora de casa, somente entrando próximo à hora almoço e voltando assim que minha adorada mãe dissesse que já tinha descansado da comida digerida o bastante para voltar a correr o quanto quisesse. Engraçado como essa preocupação parecia fazer parte de inconsciente coletivo onde todas as famílias possuíam um tio que ficara com o rosto deformado por conta de uma congestão.
Meu quarto já estava bem iluminado pelos raios matutinos quando eu me estiquei para me espreguiçar e tomar impulso para pular da cama. Geralmente levantava sentindo o aroma do café forte que minha mãe fazia para comer com pão e manteiga. O desjejum era sacrossanto lá em casa. Sentava-me despedindo de meu pai que se levantava e já ia andando para a esquina da rua principal para abrir a loja de ferramentas da qual era sócio com meu tio. Papai carregava consigo sempre um semblante de deveres a cumprir. Permanentemente austero, nunca foi de muito de dar carinhos e beijos, contudo passava lições tão bem dadas que às vezes eu implorava em meus pensamentos por uma surra bem servida ao invés de ter de ouvir seus sermões que alfinetavam o âmago de meus conceitos ocos ainda não recheados pelo concreto fortificado de caráter o suficiente.
Desci da cama e fui escovar os dentes como era de costume. Tinha o privilégio de poucos, talvez por ter sido filho único. Um banheiro em meu quarto que me proporcionava tranquilidade não tendo que disputar, com meus pais, vaga naquele que dava porta para o do corredor.
Assim que enxaguei o rosto tirando as insuportáveis remelas dos cantos dos olhos, parti para abrir a porta e iniciar o dia com as força e pressa que um garoto despende desnecessariamente só para ter o gosto de ver o tempo passar mais vagarosamente. Decepcionei-me e fiquei atônito sem compreender.
Estava trancada.
Subi e desci com a manivela bem mais que dez vezes e nada.
— Mãe! Abre aqui qu’eu acho que tô preso!
Nada! Ninguém veio para me acudir.
— Esquisito?
Esbarrei na penteadeira e notei, ao ouvir um barulho incomum, que um prato com meus dois pedaços de pão e meu café-com-leite estavam ali.
— Eu, hein! Nunca puseram isso aqui. Minha mãe era avessa a comer no quarto. Lugar de comer é sentado à mesa, dizia sempre. A impressão que tive é que, pelo barulho da conversa da cozinha, não queriam me ouvir e também não deram a mínima para que eu saísse. Julgava que ficaria enclausurado durante algum tempo pelo visto.Comi com vontade! O que havia de se fazer? A bem da verdade, não é qualquer coisa que tira a fome de quem pretende gastar muita energia aprontando por aí.
Lembro-me que o relógio marcava oito e pouco. Não podia, ainda, dizer que me sentia desesperado, doido para sair do interior daquelas quatro paredes que formavam o paralelepípedo reto-retângulo no qual passava minhas noites. Tanto que fui ao armário e peguei alguns carrinhos e bonecos para me distrair. Após algumas batalhas heroicas e batidas automotivas esplendidas que, a meu ver, haviam durado tanto tempo, voltei os olhos para o despertador da cabeceira e vi que na realidade o ponteiro menor estava perto do nove e o maior ainda não chegara ao doze. O tédio se sentara ao meu lado e não era uma companhia agradável.
Resolvi dormir mais um pouco, torcendo para que alguém da casa se lembrasse de mim e abrisse a porta em algum momento, me acordando e se desculpando pelo infortúnio de, sem querer, ter me trancafiado. Cochilei muito de leve e abri de súbito as vistas chegando quase a pegar a pessoa que pusera um copo d’água e uma maçã no mesmo canto da penteadeira.
— Hei, hei, hei, hei... Eu tô aqui, vem cá!
Esmurrei o compensado da porta múltiplas vezes com força hercúlea, mas não obtive resposta. Com as mãos espalmadas e a bochecha colada na madeira fui descendo vagarosamente, fazendo um risco torto com o pouco de lágrima que já fluía de tristeza.
Ao chegar ao chão, senti um clarão surgir por trás de mim. Confesso que me assustei inicialmente até entender que alguém abrira a janela pelo quintal. Seria a grande oportunidade se a parte de vidro ainda não me deixava preso ao meu aposento.
Ergui-me, agarrei a maçã mordendo-a com raiva e, sem mastigar muito, engoli o naco desprezando o seu gosto, apesar de ser a fruta que eu mais apreciava. Minha mãe sabia disso. Fui até a janela e avistei a goiabeira que balançava lentamente repleta de pardais.
— O que foi que aconteceu? Por que não me deixam sair?
Enfim pus-me a chorar!
***
Adormecera novamente. Um sono um pouco mais profundo que sucedera um choro inconformado, porém agora não na cama e sim no tapete cercado por meu tabuleiro e as peças do jogo de damas. Despertei e o silêncio não era tanto quanto de outrora. Dava pra ouvir o zumbido da panela de pressão cozinhando o feijão para o almoço e rádio sintonizado na Tupi. Do meu lado tinha um bilhete escrito com uma caligrafia conhecida: papai e mamãe amam muito você! A celeuma agora crescera exponencialmente em minha miúda cabeça de garoto. Se me amavam, então por que tinham me isolado do mundo daquela forma?
Soluçando ainda, tentei me distrair. Acabei entregando-me às lembranças do dia anterior.
Quase ao anoitecer de domingo, fui ao terreno entupido de árvores frutíferas, do lado da casa do Seu Milton, onde pousavam bandos de biquinhos-de-lacre. Eram passarinhos meio acinzentados de bicos vermelhos,com o canto excêntrico que chamavam muito minha atenção. Tanto gostava dos seus coloridos, que decidi criá-los em cativeiro. Sim, já era maduro, eu tinha certeza. Poderia me responsabilizar em cuidar de um bicho de estimação.
Vendo os outros moleques, aprendi a retirar da jaca uma substância colante a qual chamávamos de visgo. Todos comungávamos do mesmo plano infalível: cobríamos um pedaço mediano de arame com muito cuidado e os colocávamos, presos na ponta de um cabo de vassoura, perto de onde eles comumente pousavam para se alimentar dos pequeninos grãos de capim que infestava o terreno. Para garantia de eficiência da caça, botávamos também um alçapão com o fundo repleto de alpiste. Caso assentassem as miúdas garras no poleiro falso, ele se fecharia sobre eles.
Havia comprado uma bela gaiola para servir de moradia para a avezinha cantadeira. Seu Milton, que muito entendia de passarinhos, disse uma vez que eles não eram naturais do Brasil, na realidade. Eram oriundos da África e aqui encontraram ambiente adequado para sua sobrevivência. Verdade? Não sei. O velho tinha fama de dizer coisas sem fundamento, só para mostrar para a vizinhança que era demasiado um sujeito culto, leitor de inúmeras edições da Barsa e entendor de tudo: de bicho do pé até bomba atômica. Diziam as más línguas alcoviteiras que não tinha nem a quinta série não passando de um boçal.
Após elaborar todas minhas armadilhas e arapucas, me escondi atrás do cajazeiro e tirei do bolso, enrolado num pedaço de papel de pão, um punhado de um pozinho que havia pegado de um pote em cima do fogão. Os dentes doíam muito posteriormente, mas comer cajá verde com sal era bom demais.
Após a segunda mordida, ouvi o barulho de uma extensa revoada que vinha do leste, por cima da casa de Dona Nair. Faziam menção de pousar perto de onde havia feito a minha tocaia. Estimei que talvez fossem uns cinquenta biquinhos-de-lacre. Fiquei imóvel, temeroso por se espantarem comigo. Tal foi minha disciplina militar que senti como se fizesse parte do caule do pé de cajá, agachado sem dar a menor chance para que fugissem ao sentirem minha presença.
De repente, todos se foram, enegrecendo aquele pedaço azul de céu. Não foi sem mais nem menos acredito eu. Pressupus que tenha sido por causa de algum gambá que se esgueirou pelo capinzal rasteiro. O barulho hitchcokiano do bater sincronizado de suas asas era quase ensurdecedor. A frustração pôs-se frente a mim, pois pensava não ter conseguindo capturar nenhum para pôr na gaiola nova de madeira que comprara juntando o dinheiro do troco da merenda que meu pai me dava diariamente.
Nenhum deles ficara preso no visgo.
Ficando de pé, enxerguei melhor a situação. Para minha alegria, vi que me enganara. Um belo biquinho havia caído no alçapão, pomposo e cheio de vitalidade. Corri como nunca para chegar até ele. Tanto, mas tanto, que tropecei num galho arrancando o tampão do dedo e esfolando-o de tal maneira que quase fiquei sem a unha.
Ao chegar à casa, deixando um rastro de sangue por conta do recente machucado, pus meu novo amigo na gaiola, junto com a cumbuca de água e a cuia de alpiste. Corri para o banheiro, tomei um banho rápido e, pra ser sincero, nem mesmo senti a ardência depois de colocar remédio e band-aid para não infeccionar. Penteei o cabelo de qualquer jeito e ao sair, dei de cara com meu pai que acabara de chegar do trabalho.
— Pai! “Bença!”, disse muito agitado.
— Deus te abençoe! O que houve com esse pé? Andou jogando bola descalço e chutou o meio-fio? Meu pai tinha uma visão aquilina e num breve instante percorria todo o meu corpo vendo se eu tinha alguma escoriação decorrente de minhas peraltices do dia.
— Não pai! Vem cá que eu quero te mostrar um negócio! Segurando sua mão, arrastei-o até à varanda, onde havia pendurado minha nova aquisição e, orgulhoso lhe apontei pra gaiola.
— Olha aí, pai! Eu que peguei!
— Ah, campeão, então é esse o motivo de toda essa alegria?
— Ele não é bonito?
— É sim, bem bonito! Disse-me com um sorriso no canto da boca. Você vai cuidar dele?
— Vou!
— Vai dar conforto, carinho e comida a ele?
— Claro!
— E amor?
— Também, ratifiquei!
— Isso vai fazê-lo bastante feliz, você não acha, campeão?
— Ué, pai! É claro que vai! Isso é óbvio, não!
Ele então me deu um leve tapinha nas costas e foi acabar de chegar em casa. Tirei a gaiola do prego da parede, coloquei sobre a mesa e fiquei sentado defronte a ela por algumas horas observando sorridente o biquinho voar arisco de um lado para o outro.
Quando Morfeu me embebedou com aquele sono insuportável não hesitei e fui cambaleando para a cama.
***
Dei-me conta que ainda estava naquela situação esdrúxula e inesperada.
Fui ao meu banheiro particular e enquanto dava descarga, ouvi e senti uma presença diferente no meu quarto. Pus a cabeça para fora e virei em direção à porta que se encontrava aberta. Tamanha era minha alegria que quase não percebi que meu pai estava sentado em minha cama sorrindo para mim.
— Oi filhão, bom dia! Disse como se nada de errado estivesse acontecendo.
— Poxa pai! Corri até ele, abraçando-o com força. Por que vocês fizeram isso comigo? Nunca fiquei de castigo assim?
Com sua calma característica e voz forte concisa, deitou sua mão calejada em meu ombro me confortando.
— Quem disse que você está de castigo?
— Como não? Falei com cuidado, num tom não muito alto, pois nunca tive a falta de bom senso de responder meu pai. Mais por respeito do que por temor, é mister ressaltar!
— Diga-me uma coisa, campeão: aqui no seu quarto faltou conforto, carinho ou comida?
— Não! Respondi meio cabreiro. Comi o pão do jeito que eu mais gostava e minha fruta preferida.
— E amor?
— Mas você e minha mãe me prenderam...
— Poxa, pelo visto você não leu nosso bilhete!?
As coisas começaram a clarear em minha mente.
— Meu Deus! Espantei-me.
— E além do mais, nós ficamos observando você lá do quintal o tempo todo, felizes e sorridentes por tê-lo conosco.
Foi aí então que eu tive certeza plena da lição que me foi dada. Como um guepardo, atropelei meu pai, passei voando por minha mãe que vinha pelo corredor e fui até a gaiola do biquinho. Levei-o ao quintal e abri rápido a portinhola. Ele voou rápido tal como quem não quer perder a única chance de conseguir sua alforria. Pousou no galho da goiabeira, me olhou com vigor e demasiado desprezo. Foi-se!
Deixei, de propósito, a mini-jaula cair no chão para quebrar e não ter nenhuma possibilidade de conserto.
— Preso, não há quem seja feliz!
Ao olhar para trás, vi meu pai de braço cruzado com minha mãe apoiada em seu ombro, meio chorosa.
— Pelo visto, campeão, você se desinteressou por criar passarinhos?
— É, foi! Respondi.
Minha mãe tirou o pano de prato do ombro e dando com ele carinhosamente em minhas costas, disse com a voz emocionada e embargada: — Vá tomar banho e almoçar! Está quase na hora de ir pro colégio.

Cristiano Marcell

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